NÓS TRANSGRESSORES

sexta-feira, 13 de agosto de 2010 Karine Winter


Gostaríamos de ver no trânsito uma expressão de cidadania, um modo de partilhamento do espaço das vias públicas, ordenado por regras comuns e impessoais. Mais do que uma necessidade vital individual, transitar seria um exercício cotidiano de solidariedade, gentileza e, sobretudo, respeito à integridade de cada pessoa, especialmente daquelas cujos deslocamentos as colocam em posição mais frágil na cidade – os pedestres. Entretanto, transitar é transgredir regras em nossa sociedade. Nosso modus vivendi nas ruas é um exercício sistemático de submissão da lei a interesses individuais. A novidade nos últimos 10 anos, a partir da municipalização da gestão do trânsito, foi que o poder de fiscalização das condutas aumentou significativamente e isso acabou revelando nossa não-cidadania de todos os dias. Veja o que acontece na cidade de São Paulo: o descumprimento das regras do trânsito é flagrado e autuado pela fiscalização, aproximadamente quatro milhões de vezes a cada ano. Parece muito, mas, é bem pouco se considerarmos que por dia circulam cerca de quatro milhões de veículos na cidade. Ainda assim, vale analisar um detalhe desses números: quase a metade desses flagrantes é realizado eletronicamente e diz respeito a apenas uma das centenas de infrações previstas pela lei – o excesso de velocidade. Como não é aceitável imaginar que as pessoas, milhões delas, avancem o limite de velocidade por esquecimento ou porque desconheciam que havia um limite naquela via, os sensores inquestionáveis dos radares capturam um fenômeno muito mais profundo: a insubmissão deliberada dos indivíduos às condutas prescritas pelo Código de Trânsito. O condutor corre porque QUER correr, propositalmente, intencionalmente.

A transgressão das regras de circulação não é uma exceção, nem pode ser compreendida como um comportamento patológico de certos indivíduos. Ao contrário, transgredir a regra é uma prática generalizada, que se desdobra em pequenas atitudes, sempre justificadas pelas circunstâncias da vida agitada da metrópole – são as infrações “do bem”. Por exemplo, correr além do limite da velocidade da via, se não for muito abusivo, é uma infração “do bem”, que pode ter várias justificativas: uma mulher em trabalho de parto, uma entrevista para um emprego, e até uma insuportável dor de barriga. É por isso que todos têm tanto ódio dos radares – eles tratam com rigor excessivo o que não é considerado verdadeiramente uma “infração”. Correr 12 km/h além do limite da via, por exemplo, é perfeitamente aceitável; é uma “pequena infração”, comparada a correr a 120 km/h, quando a velocidade máxima é 60 km/h. Qual é o mal que pode causar 12 km/h a mais? Isso torna alguém um assassino, um criminoso, um bandido? Engraçado é que as pessoas detestam os radares, mas, não são contra radares; a opinião geral é que eles são “muito importantes” para impedir a violência dos “loucos que correm pelas ruas a mil por hora”.

A infração “do bem” é isso uma adaptação momentânea da regra: a pessoa estaciona o carro em fila dupla, mas, “só por um minutinho”, atende ao celular enquanto dirige, mas, “só pra desligar”, estaciona o carro sobre a faixa de pedestre, mas, “só de noite, quando não tem ninguém passando”, bebe uma ou duas latas de cerveja, mas, “está ótimo para dirigir”; a lista de exemplos seria infinita. São atos de esperteza, uma prova do “jogo de cintura” da nossa cultura. Mas ninguém é contra o Código de Trânsito; isso nem se discute! Na maior parte das vezes, a regra até é seguida pela maioria das pessoas. Quando se julga, porém, que é necessário suspendê-la, isso é feito sem grande remorso. Quem arrisca uma “infração do bem” sabe, em primeiro lugar, que sua atitude é uma transgressão e que ela depende da inexistência da fiscalização e, por conseguinte, de uma garantia de impunidade. A “infração do bem” existe no espaço deixado pela inobservância das condutas. Se ninguém viu, qual é o problema de seguir na contramão “só por uns 20 metros?”. O problema começa quando milhões de habitantes fazem a mesma coisa simultaneamente. Quando falha o ordenamento, prevalece a força dos interesses particulares e, principalmente, sabota-se a previsibilidade das ações no trânsito e sem previsibilidade não há trânsito seguro.

Autor do texto: Eduardo Biavati -  Mestre em Sociologia e especialista em segurança no trânsito.   http://biavati.wordpress.com